Como estou? Obrigada por perguntar!




Texto adaptado (Autor Desconhecido). Me desculpem os palavrões, mas tem hora que somente eles conseguem dar a conotação correta e de acordo com o que realmente sentimos.
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Tá certo. Vamos falar sobre câncer? Mas vamos falar MESMO!!!

Nada de desfile de fotos preto e branco de mulheres lindas e sorridentes em seus melhores retratos pra talvez alguém perguntar do que se trata e você conversar inbox a respeito.

Vamos falar publicamente, abertamente, escancaradamente sobre câncer; essa doença tão assustadora que muitos não ousam dizer seu nome e usam todos os subterfúgios possíveis e imagináveis para não falar a respeito.

Eu estou com câncer. Câncer Maligno de Ossos e Cartilagens, raro, num local onde ninguém sabe o que está ou não relacionado e o que esperar. Já fiz dezenove aplicações de quimioterapia, sendo elas mensais. Fiz uma cirurgia em 29 de maio/2017, mas não conseguiram retirar todo tumor devido sua localização. Então, realizo mensalmente exames de sangue, a cada 2 meses ressonância magnética do crânio para acompanhar o tumor e semestralmente cintilografia óssea para rastreamento de metástase.

Sinto dores por todo o corpo, a níveis extremos, exatamente após 15 dias da quimioterapia. Fortes dores que me deixam inativa por quase 15 dias, onde então preciso enfrentar mais uma aplicação da substância que não vai me curar; apenas tentar retardar o crescimento do resquício de massa tumoral e tentar não ter metástase. As dores me impedem de manter minha vida ativa como deveria ser para uma mulher de apenas 33 anos.

Além disso, alguma modificação bioquímica parece estar ocorrendo e com isso, venho tendo oscilações de humor onde estou muito bem e inexplicavelmente sou acometida ,por um estado depressivo com ideação suicida. Então, venho enfrentando estas oscilações a fim de me manter o máximo possível em zona de equilíbrio físico e emocional. Além disso, preciso manter em dia as consultas mensais com a oncologista e psiquiatra, bimestrais com neurocirurgião, e semanais com a psicóloga. E essa rotina irá se repetir por toda vida, sem direito a pausa ou alta, sem ao menos eu saber o que esperar do tratamento, se teremos ou não sucesso, afinal nem os médicos sabem. E estou exausta!

Tive alguns episódios de  esquecimento,  visão turva, dores de cabeça intensas e variação de  humor bruscas. Procurei um neurologista após um episódio onde não conseguia lembrar o nome do meu marido. O médico então me passou uma tomografia, e me recusei a fazer. Deixei  passar. Associei tudo ao ritmo estressante do trabalho, à insônia, à genética; e a quaisquer outro motivo que justificasse o que eu sentia e me fizesse reafirmar que estava tudo bem, como a maioria de nós fazemos. Apesar de todas as campanhas de esclarecimento no facebook e no instagram e na vida real, eu levei cerca de uma ano pra buscar ajuda.

Afinal o câncer não segue a lógica das campanhas de esclarecimento no facebook com fotos preto e branco. O câncer não segue a lógica da prevenção da vida saudável e da boa dieta e do pensamento positivo e do não se deixar abater das pessoas bem resolvidas que se cuidam e fazem seus exames todos em dia. O câncer não se dobra à lógica de consumo que trata nossos corpos como máquinas que deveriam ser obedientes.

O câncer é uma foda do caralho. É uma foda do caralho ter uma doença que pode te matar. É uma foda do caralho ter uma doença que vai te acompanhar pelo resto da vida. É uma foda do caralho ter uma doença cujo tratamento te deixa quebrada, com fortes dores, sem conseguir fazer as atividades básicas do dia a dia, e, ainda, pode te matar. Há casos e casos, claro. Há casos piores que outros. Há doenças piores. O tratamento já foi pior. Já morreu mais gente. Mas no fim das contas é uma FODA DO CARALHO quando o teu maior consolo é "pelo menos estou viva"; ou "pelo menos eu não estou com minhas vísceras do lado de fora do corpo"; ou "pelo menos eu não tenho que andar por aí carregando um saquinho com o meu próprio cocô ou sendo carregada por alguém".

Já que vamos falar de câncer, vou falar da minha experiência pessoal. Minha experiência pessoal com o câncer tem a ver com a solidão. Uma solidão que não tem nome. Uma solidão que é um silêncio ensurdecedor ao meu redor, como uma bolha. Eu ando pelo mundo como se tivesse uma bolha em volta de mim.

Tenho recebido muito, infinito amor de todas as formas, de amigos e amores próximos, pessoas que são verdadeiros presentes que ganhei da vida sob as mais variadas maneiras; que me protegem e cuidam de mim de uma maneira que me enche de uma gratidão que não existem palavras pra expressar. E tenho tido experiências que só posso chamar de divinas com pessoas muito menos próximas e até com desconhecidos que se materializam na minha vida e me dão a certeza de que quando a gente diz "Deus é amor" isso não é uma metáfora. E nesse sentido tenho vivido como nunca, a vida como dádiva e os encontros como verdadeiros milagres.

Mas a solidão, a solidão do câncer não tem nome. Porque no fim das contas, é a solidão do meu corpo que eu estou vivendo na carne. E digo isso com alguma consciência do quanto sou privilegiada e afortunada. Tenho um marido e sua família que me apoiam de todas as maneiras que podem, cuidando de mim com um amor e uma dedicação que só podem me levar a crer que eu devo ter feito alguma coisa certa nesta vida, afinal, pra ter tanto amor em volta de mim. Porque ganhei uma família que consegue se fazer presente junto a mim com seu amor todos os dias. Porque vivo num lugar salubre. Porque minha psicóloga é uma terapeuta do caralho e eu posso me dar ao luxo de falar com ela sempre que precisar. Porque tenho um lindo filho que me ensina com seus desafios a enfrentar os meus fantasmas. Porque meu marido trabalha e com isso temos plano de saúde e acesso a excelentes profissionais. Porque temos uma vida boa o suficiente pra ter estrutura psicológica e emocional e saúde pra atravessar este calvário sem maiores sofrimentos e dores além dos sofrimentos e das dores do câncer, que já são demasiados.

Vou ao COI (Agora chamado de Américas Centro de Oncologia),  e espero uma eternidade pra ser atendida – mesmo sendo atendida na hora, qualquer espera num hospital de câncer é sempre uma eternidade – e o centro médico aonde eu vou é só pra câncer.  Vou repetir: o centro médico aonde eu vou é inteiro só pra câncer. E eu tento me proteger e me isolar, ponho meus fones de ouvido mas não tem som que faça alguém passar por ali imune ao sofrimento e à dor de tantas e tantas pessoas, todas com câncer.

Então eu espero uma eternidade no meio daquelas pessoas. Muitas daquelas pessoas vêm de longe de ônibus ou de trem nesta cidade com uma mobilidade urbana de merda, e muitas têm sei lá que rede de apoio e estão em sei lá que condições financeiras; e depois da quimioterapia voltam de ônibus ou de trem pra casa em vez de carro ou táxi como eu, e carregam uma bagagem de dores e sofrimentos que nunca nem de longe fizeram parte da minha vida. E elas têm que se virar com essa porra toda e continuar lutando pela sobrevivência num grau, mas num grau que nem de longe eu posso imaginar.

Então, pessoas queridas, vamos falar de câncer, mas vamos falar MESMO. Vamos falar do que acontece no mundo em que a gente vive, vamos falar das dores e dos sofrimentos e das violências que a gente sofre e carrega e engole em silêncio todos os dias, a cada dia das nossas vidas inteiras. Vamos falar da solidão de todos nós, dos fardos que nós carregamos, da saúde que estamos perdendo, do silenciamento e da invisibilização que estão nos adoecendo e nos matando.
Vamos falar sobre câncer? Mas vamos falar mesmo!!!

Vamos falar publicamente, vamos discutir abertamente, vamos pronunciar em voz alta e com todas as letras o nome da doença maldita em vez de continuarmos fingindo que se a gente fizer todos os nossos exames em dia a gente vai escapar.

Sim, é importante fazer os exames em dia, mas nada disso vai impedir ninguém de ter câncer algum dia. Porque o câncer não se dobra à lógica de mercado que trata a saúde como se fosse algo comprável, nem à lógica de consumo que trata nossos corpos como objetos que vão obedecer aos nossos desejos, nem à lógica da religião que diz que Deus está no comando.

Vamos falar sobre o câncer, vamos falar sobre ajuda concreta! Vamos falar sobre grupos de apoio, sobre ajuda material, sobre doação de sangue e de medula. Vamos falar sobre doação de chapéus e perucas. Vamos falar sobre não julgar quem está com câncer como alguém que não deve ser tão bem resolvido assim ou não deve ter se alimentado direito ou alguma coisa ele deve ter feito de errado, afinal, agora ele está com câncer.

Vamos falar sobre se a pessoa no final das contas morrer, e por favor não vamos fazer aquele julgamento velado do "tsc, ela perdeu a batalha contra o câncer" como se ela não tivesse tido força de vontade suficiente ou não tivesse pensado positivo o suficiente ou como se lhe faltasse a fé necessária; porque não tem nada mais equivocado e cruel que isso de achar que o câncer é uma batalha, porque pra morrer basta estar vivo e me desculpem mas batalha não é o câncer, batalha é a vida.

E me desculpem outra vez porque é muito desagradável falar dessas coisas e por isso mesmo falar de câncer é uma merda  É melhor postar foto preto e branco no facebook e eventualmente falar sobre isso inbox e lembrar os amigos de fazerem os exames pra todo mundo se garantir e ninguém precisar passar por isso.

Então me desculpem mas preciso dizer que não tem garantia possível e pior, que não dá pra falar em câncer sem falar em morte; não dá pra falar em câncer sem falar em medo; não dá pra achar que dá pra falar de câncer e só falar em "pensamento positivo" e "boas vibrações" e "vai dar tudo certo" e "vai passar" – porque enquanto não deu certo, enquanto não passou... é uma bad trip do inferno e uma eternidade que não acaba nunca de um tempo que você passa na merda; Mas tem que seguir tocando a sua vida, dando bom dia para as pessoas, postando coisas no facebook, se preocupando com os rumos da democracia no país e perguntando para os amigos como eles estão e como vai a vida; porque a morte está aí do teu lado feito aqueles vídeos tão fofinhos da criancinha de um ano que descobre que tem uma sombra – a morte está bem aí feito uma sombra, mas a vida segue.

A noite é escura e você não vê um palmo adiante do nariz, mas tem um marido pra amar, um filho que precisa de você e necessita de cuidados especiais, além do que você também precisa; tem contas pra pagar, compras pra fazer, casa pra limpar e uma vida pra viver. Então é um passo pequenininho de cada vez, um passo cuidadoso porque está um breu e não vá por favor cair em nenhum buraco, mas devagar e sempre, não pára, não pode parar, não se sabe se tem tempo pra parar, se parar é pior.

Então vamos, sim, vamos falar de câncer. Mas vamos falar mesmo. E quem sabe até vamos ouvir, talvez. Porque reduzir o câncer a objeto de uma campanha de prevenção pra que nenhum de nós nunca tenha câncer é tratá-lo como aquele bicho-papão que a gente deixa do lado, de fora dos muros da cidade e tranca tudo pra gente aqui dentro estar seguro.

Reduzir o câncer a esse inimigo que a gente previne pra nunca precisar enfrentar é silenciar e invisibilizar a realidade de quem vive com ele. Porque postar foto preto e branco e falar sobre isso no segredo das nossas inbox, lamento, mas não é falar sobre câncer e muito menos é combater o câncer; É exatamente manter devidamente isolado e asséptico e seguro nosso mundo livre de câncer – enquanto as pessoas de carne e osso que vivem com seu câncer seguem a uma distância segura.

Então vamos, sim, vamos falar de câncer. Mas vamos falar mesmo. E principalmente vamos ouvir. Vamos ouvir e ver quem tem câncer, de verdade.

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